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AINDA EDUARDO PRADO COELHO
BAIRRO ALTO
(…) Terminada a agitação do 25 de Abril (quando se tinha abolido o Estado antes da socialização dos meios de produção), em que todas as noites reinventávamos o mundo desde o princípio, tínhamos descido até aos bares canalhas do Cais do Sodré, por entre chulos e marinheiros. O mais conhecido tinha sido o "Jamaica". Depois houve no Conde Barão "As Noites Longas", com o então famoso Zé da Guiné hoje esquecido e doente), e hordas de gente que dançava e ceava e andava escada acima escada abaixo. Só depois subimos ao "Frágil". Aí formámos uma constelação de pessoas que o Mário Cabrita Gil fotografou sobre um pano negro, e a que deu o nome de "A Idade da Prata". Podia-se também dizer que éramos "pós-modernos", palavra eslava na moda e eu procurara teoriza-la um pouco. O Ricardo Pais pusera em cena essa nova realidade do "pós-modernismo'". 'Na arquitectura, na pintura, mais tarde na literatura, encontrávamos formas novas nas práticas artísticas que poderiam aparecer designadas na ideia comum de "pós-modernidade". Mais tarde, um livro de Jean-François Lyotard fez da "pós-modernidade" uma condição, mais do que uma vontade deliberada: era preciso reescrever a modernidade sobre um horizonte em ruínas, que vinha da falência das grandes narrativas que haviam preenchido a filosofia da história. Uns desgarrados do catolicismo e das suas catequeses, outros órfãos de um marxismo que levara directamente às sociedades totalitárias, todos vinham dançar para o "Frágil" e passear pelas ruas do Bairro Alto. Às vezes, mais soturnos, refugiavam-se na "Capela". Quando saíam procuravam tropegamente um táxi e vomitavam na valeta. Amigos solidários punham-lhes a mão na testa como faziam as mães com os filhos doentes. Quando tu passas a mão pela minha cabeça, é tudo tão verdade. Um dia apareceste coberto de ligaduras brancas, numa provocação deliberada. E andaste assim de bar em bar. Até que numa cena de ciúmes alguém puxou de uma navalha e rasgou-te a carne. O sangue saiu às golfadas. Chamou-se uma ambulância para onde entraste em maca. Mais tarde, voltaste lá e ajoelhaste para tocar com os dedos o local do sangue. E depois lambeste o sangue como quem entrasse num incesto interminável. Um circuito que se formava com os arames da roupa estendida. E acendia-se um arco-íris que transformava a noite num incêndio. Eram anos de prata que se desfaziam lentamente em neve e cinza."
Eduardo Prado Coelho, in "Nacional e Transmissível", 2006
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