2007/08/18

A VIDA IMPERIAL NA CIDADE ESMERALDA


Imagem retirada daqui.
Uma parte ínfima do Iraque já está ao nível das zonas mais prósperas dos Estados Unidos. Este pequeno enclave no meio da Bagdad em guerra é conhecido como a Cidade Esmeralda. Nele está instalada a administração da força ocupante do Iraque. O espaço destoa em tudo do país em chamas que o rodeia, o aspecto limpo, as vivendas luxuosas, a paisagem verdejante, os equipamentos de desporto, lazer, os centros comerciais, os restaurantes, bares e cafés, os carros novos que circulam pelas artérias impecavelmente pavimentadas, o hospital completamente apetrechado, fazem rapidamente esquecer que para lá dos muros fortemente guardados deste paraíso o inferno em que está transformado o Iraque, consome em chamas largas dezenas de pessoas por dia só em atentados e acções militares.

O livro de Rajiv Chandrasekaran, A vida imperial na Cidade Esmeralda, descreve esta realidade, denunciando criticamente o afastamento dos ocupantes desse espaço em relação à realidade extramuros.

“Não fosse os contentores verdes com cruzes vermelhas empilhados na rua, eu nunca teria encontrado o hospital da Zona Verde. Parecia-se com dezenas de outras moradias de mármore e grés que existiam em redor do Palácio Republicano. A fachada tinha seis pisos, as janelas eram coloridas e havia palmeiras nos lados e nas traseiras do edifício. Uma placa modesta junto à entrada, parecida com a placa de uma loja qualquer, identificava o edifício.
Uma vez no interior, porém, não havia dúvida de que o edifício de três andares era um moderno hospital militar americano. Tinha cinco blocos operatórios, dez salas de emergências e 76 camas. Havia ventiladores, monitores cardíacos computorizados e um aparelho de TAC. Neurocirurgiões e especialistas em queimaduras estavam prontos para tratar os feridos das explosões de bombas nas estradas.
O hospital estava protegido da fina areia do deserto que se via em todo o Iraque. O chão de mosaico branco estava sempre limpo, bem como as paredes e as janelas. Só as botas da tropa dos médicos da sala de emergência estavam sujas. Em vez de castanho claras, eram pretas e estavam manchadas de sangue.
(…) tinha mais de 350 médicos, enfermeiros e pessoal de apoio na Zona Verde.Antes da guerra, o hospital era uma clínica privada para os familiares de Saddam e dirigentes do Partido Baas. Quando os Americanos chegaram continuou a ser um estabelecimento privado, reservado a militares, pessoal da CPA e empresas privadas. Os únicos Iraquianos admitidos eram aqueles que tinham sido acidentalmente alvejados por tropas americanas.
Apesar da sua admissão selectiva de Iraquianos, Tommy Thompson, o secretário para os serviços de saúde e humanos, usou o hospital como fundo para louvar a Coalition provisional Authority (CPA) durante uma visita a Bagdad, 11 meses depois do início da ocupação. Este hospital, anunciou ele sob o pórtico, era um exemplo de como os Estados Unidos tinham começado a «restabelecer o Iraque como um centro de excelência de cuidados de saúde».
Nenhuma dessa excelência era visível fora da Cidade Esmeralda.O Hospital Yarmouk, um conjunto de edifícios de dois pisos de betão, erigidos em redor de uma praça de betão, ficava a cinco minutos de carro da Zona Verde, apenas a alguns quarteirões de distância na estrada em direcção ao aeroporto. Era um dos maiores e mais movimentados centros médicos de Bagdad, mas depois de visitar mais de uma dúzia de outros hospitais do Iraque, comecei a ver o Yarmouk como um bom representante do sistema de saúde do país. Era, muito simplesmente um desastre.


Não havia nada limpo. Os lençóis estavam sujos, o chão manchado de sangue, as casas de banho inundadas. Os quartos não tinham o equipamento mais básico para vigiar a pressão arterial ou o batimento cardíaco dos doentes. Os blocos operatórios trabalhavam sem instrumentos cirúrgicos modernos nem sistemas de esterilização. Os armários de medicamentos estavam vazios. Na sala de emergências, algumas macas manchadas de sangue lançavam sombras escuras sobre o chão. Não havia desfribilhadores, ventiladores, equipamento de transfusão de sangue, nem injecções de epinefrina.
Visitei o hospital pela primeira vez algumas horas depois de um bombista suicida ter arrasado a embaixada Jordana com o seu carro armadilhado. A ala das urgências ecoava com os gritos de homens cujos braços tinham sido arrancados, mas que não receberam nada para aliviar a dor. Cheirava a sangue, a excrementos e a cadáveres que tinham sido guardados sem refrigeração. Familiares desesperados juntavam-se à volta dos seus entes queridos, que estavam tão queimados e mutilados que não sobreviveriam à noite. Toquei na mão de um jovem magro, Abbas Ali, que tinha as pernas e o abdómen cobertos daquilo que pareciam ser queimaduras de terceiro grau. Tremia, mas não chorava. Repetia, incessantemente, as palavras «Bismillab ar rahman ar rahim» «Bismillab ar rahman ar rahim». (Em nome de Deus, o beneficente, o misericordioso). Um médico disse ao meu intérprete que Abbas não teria mais do que um ou dois dias de vida. «Não posso fazer nada», disse ele. «Não temos equipamento para tratá-lo».


A história do Hospital Yarmouk era a mesma que a de quase todas as outras instituições públicas do Iraque. Nos anos 70, era um dos melhores centros médicos no mundo árabe. Jordanos, Sírios e Sudaneses viajavam para Bagdad para serem operados. Isto mudou, obviamente, após a invasão do Kuwait e a imposição de sanções. Embora Saddam tenha sido depois autorizado a vender o seu petróleo por alimentos e bens humanitários, o hospital nunca teve medicamentos suficientes. O Governo acusava as Nações Unidas de alterarem as ordens de compra. As Nações Unidas acusavam o governo de encomendar os bens errados e de fazer compras a burlões em vez de a fornecedores com reputação. A Administração Bush acreditava que o governo de Saddam, que tentava obter apoio internacional para que as sanções fossem levantadas estava a privar deliberadamente o Yarmouk e outros hospitais de bens necessários.Por muito mal que o hospital estivesse antes de os americanos chegarem, ficou muito pior quando o exército americano entrou na cidade. Um disparo de um tanque atingiu o hospital no dia em que o governo de Saddam caiu, inutilizando o gerador e enviando os médicos para casa. Sem ninguém para guardar o edifício, os saqueadores levaram tudo, desde camas, medicamentos, equipamentos do bloco operatório, até aos aparelhos de TAC e de ecografias. Quando os médicos voltaram ao trabalho, tiveram de lutar para providenciar primeiros socorros com equipamentos improvisados.”

Chandrasekaran, Rajiv, "A vida imperial na cidade esmeralda", E70

«Este livro extraordinário afasta a cortina da ilusão e revela, de forma assombrosa, o que realmente aconteceu na Cidade Esmeralda no ano crucial após a derrube de Saddam Hussein. A reportagem de Chandrasekaran é plena de detalhe e impediosa na sua documentação do misto de idealismo, confiança, energia, hubris, erros políticos, cegueira cultural e pensamento fantástico daqueles que vieram para salvar o Iraque e tornaram a situação ainda mais grave.» David Maraniss, autor de They Marched into Sunlight, Retirado do Webboom

Sem comentários: