2007/06/16

A MÁQUINA VOADORA DE LEONARDO



“A Máquina Voadora de Leonardo
Passou mesmo agora aqui ao lado
Não se sabe se vem dos tempos ou se para lá caminha:
Sejam honestos, não digam que esta dúvida é só minha.
Lá por dentro vai tudo numa fona
O Freddie Mercury discute com o general Carmona
Assuntos ligados ao movimento gay
Quem vai dar um tiro em quem é que eu não sei.
O Kennedy, cabeça inclinada para a frente
Parece ter morrido outra vez, de repente.
Nada disso. Está a agradecer a uma Marylin Monroe em lã
Que acaba de lhe oferecer o Gengis Khan.
O Hitchcock ri a preto e branco por causa do cagaço
Que pregou ao Sinatra quando lhe deu um abraço
Deixando-lhe uma mancha de sangue na camisa
Mais um bocado de lodo do Tamisa.
O Lenine dá um autógrafo num panfleto à Virgem Maria
Que retribui com um postal ilustrado da Cova da Iria.
Levanta-se o Guevara que faz um discurso de asma
Sem se lembrar que, aos mortos, nada os entusiasma.
Condecorado pelo Estado Novo com a Caravela de Lama
Segue num banco de trás o inolvidável Gama
Sem perceber que desta vez navega, mas voando
Assobia um fado do Marceneiro, e vai remando.
Contando anedotas sobre a ditadura militar
O Allende diz ao Prestes que o que é preciso é não marchar
Quando começa o serviço a bordo, um mártir da Intifada
Pergunta se querem pedras, café ou laranjada.
Neste momento levanta-se às riscas o Picasso
Para leiloar um quadro, As Mulheres Sem Espaço.
Arremata-o o Louis Armstrong que entretanto canta
What a Wonderful World, um título que nos espanta.
Quem não gosta deste estilo é o Gardel
Que vai pedir a quem para cantar?, ao Jacques Brel.
Este, que vai a discutir em flamengo com o Paulo VI
O porquê assim e assado da música e do texto,
Responde ao tanguista, de quem sempre gostou pouco,
Que não pode cantar, depois de morto ficou rouco.
Tremelicando de frio, Goebbels pede uma manta. Quem lha dá?
Essa mulher única, de todos e por todos, Madre Teresa de Calcutá.
Irado, um judeu anónimo quase agride a Madre indefesa
Que com a calma do outro mundo lhe sugere: “Reza filho, reza.”
Deitado, ocupando três lugares e parecendo um puto
Vai o Churchill mascarado de Carnaval de Veneza, com charuto.
Para ele, aquela gente é igual ao litro do Porto, tanto faz
E quer lá saber se foi bom na guerra e mau na paz.
Um filósofo grego que da imortalidade não se safa
Pede ao Hemingway que lhe abra outra garrafa.
Logo ao lado, a Maria Antonieta faz assédio
Ao Louis Pasteur – vacine-me contra o tédio!
Das Galápagos, o Darwin mostra uns folhetos
Com tentilhões irmãos, primos e até netos
Enquanto o Aquilino – como no milagre dos pães –
Tira do regaço A Casa Grande de Romarigães.
O Edison, como o olhar carregado de invenção,
Diz a Cleópatra: - Também inventei a paixão.
Mas vem o Marco António fardado de ciúme
Vociferar: - Também tu, ó Edison, será que não tens mulher?
O Generalíssimo pavoneia-se cheio de medalhinhas.
O Salazar, como o menino Jesus, fica nas palhinhas
De que são feitos os bancos da máquina voadora
De onde, com os balanços, a História vomita borda fora.
Entusiasmado perante Beethoven, Van Gogh, o holandês
Que lhe conhece a música mas lhe desconhece a surdez,
Fala-lhe há horas na sua última peça.
O Ludwing já dorme, mas diz que sim coma cabeça.
A máquina Voadora aumenta muito a altitude
Lá mais para cima, onde o ar dá mais saúde.
E ouve-se o Bogart gritar, cheio de catarro
- Mais devagar porra, não consigo acender o cigarro.
Os autores da Bíblia viajam sisudos, sempre à parte
Cheios de medo que a Máquina Voadora só pare em Marte
De que há pouco ouviram histórias a um tipo da NASA
Que fala do espaço como se estivesse em casa.
Agarrado à cabeça – diz-se que desde a hora da partida –
Vai o comandante Cousteau, implorando pela descida
Não só à terra, mas à profundeza dos oceanos
Onde pesquisou tudo, até petróleos e enganos.
Limpando os óculos pequeninos numa nuvem
Pessoa pede ao piloto para
Mandar uma Mensagem.
- Claro que sim. Em nome de quem mando?
- De ninguém, ou melhor, do estranhíssimo Fernando.
O Pasolini contratou o Marlon Brando para fazer de loura
O Lennon e o Harrison fazem a banda sonora.
Como se vê, a actividade aqui é muito forte
Para lá da turbulência e até da morte.


Aqui só se respeita o caos não há métrica ou rima ou
acordo ou misericórdia
Não se fecham os olhos a nada tudo é absoluto e
simples claro e escuro
As cores não são o que pintamos são cores mortas-vivas
os homens andam por
aqui aos milhões vivem-se aos milhões matam-se aos milhões
desde sempre para sempre
O mundo melhor é haver mundo amanhã se
puder ser a desordem é o
Regulamento universal porque não podemos amar a
quem não nos tem amado
e não podemos perdoar a quem não nos tem
Perdoado vivemos para ter documentos e autorizações
Que é a maneira inventada por alguém em nosso nome
Para sermos anti-terroristas anti-fascistas anti-comunistas anti-depressivos
Anti-traça anti-rugas – produtos colocados no mercado
por uns tipos que a sabiam
Toda civilizadamente claro já não me apetece mais
rigor mais disciplina já nem
O caos me apetece respeitar maravilhoso mesmo só o
concreto impossível que
Há dentro de cada um de nós


Agitou-se muito o voo idealizado por Leonardo.
As pessoas e as vidas foram pelos ares
As folhas onde escrevo
Os sinais de música
Os cálculos de Copérnico
A engenharia das naves
A poesia dos mapas
A prosa perdida

A Máquina Voadora de Da Vinci não tem código
Não é uma adivinha
É a genial imperfeição do que é cruel e belo e não se alinha.
Agora sabe-se que vem dos tempos
E que para lá caminha.
in, "Quando não souberes copia", Fernando Tordo

1 comentário:

Manuel Veiga disse...

excelente, meu caro Marquês! como um vórtice a tua verve poética. fiquei "apanhado" de início até final.

um grande abraço