Quando, alguma vez, a liberdade irrompe numa alma humana , os deuses deixam de poder seja o que for contra esse homem." (Sartre)
Se Saramago não tivesse sido económico na escolha do título para o seu último romance “Caim”, poderia ter adoptado “Humanas Perplexidades”. Este seria o título que eu encontraria para o texto, se ele me tivesse sido dado a ler sem baptismo prévio.Acompanho a escrita de Saramago há muitos anos, ainda antes do tal Nobel. Poucos foram os livros que não li e alguns mereceram a minha reincidência, caso de “Levantado do Chão”. Por isso, “Caim” era-me previsível, antevia já o seu conteúdo, Deus e a sua relação com a humanidade são presenças frequentes nas estórias criadas.
O que se escreveu e afirmou sobre o livro e o seu tema, confirmava-me a expectativa.
Li-o agora.
Dei o tempo por bem empregue. Magistralmente escrito, é talvez um dos mais límpidos e directos textos que li do autor. O permanente diálogo e a sucessão de estórias dentro da estória resultam numa narrativa fluida e fácil.Importa, para se conseguir ler este texto e aproveitá-lo nos seus detalhes, possuir cultura bíblica. Um conhecimento prévio das “estórias” bíblicas dos primeiros livros ajuda a situar a narrativa.
Caim, julgado e condenado por Deus, transforma-se, ao longo da estória, no juiz dos actos de Deus. Caim é, neste particular, uma personagem anacrónica. Possui, por assim dizer, um quadro de valores humanista, questionando Deus pelas arbitrariedades que este comete, algo que mais nenhuma personagem bíblica faz. Caim poderia ser um manifestante antiguerra, que questiona a morte de inocentes no bombardeamento moderno de uma cidade como punição dos seus governantes. Fá-lo a Deus, o Senhor da Guerra, que dizima Jericó e elimina Sodoma e Gomorra. Que dá indicações precisas de como dividir os saques resultantes, contabilizando a sua parte.
Mas este anacronismo de Caim encerra outra afirmação. Aquele é o Deus daquele tempo, da infância do Homem, pouco complexo, caprichoso e cruel. Tão cruel e guerreiro como Josué. Mas como poderia o Deus de Josué não ser guerreiro e saqueador, se ele o era. Como poderia o Deus de Moisés não ser libertador e vingativo se Moisés queria libertar o seu povo e vingar o seu opressor.
Como poderia Deus ser, em cada tempo, diferente daqueles que nele se projectavam?Deus é uma ideia histórica e evolui historicamente ao lado do seu criador, sendo por isso capaz do melhor e do pior, tal e qual qualquer homem...
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