LUIS RALHA
Faleceu na semana passada Luis Ralha, artista plástico. Cursou pintura na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa e artes decorativas no Liceu António Arroio. Detentor de um trabalho ímpar e de um curricula impressionante. Além das qualidades artísticas, Luis Ralha possuia raras qualidades humanas. Todo o seu trabalho foi um manifesto. Cada obra sua é uma narrativa.
Em Loures colaborou na programação de exposições de artes plásticas no Município. Foi autor de uma escultura evocativa dos 30 anos do 25 de Abril no centro de Santa Iria de Azóia. Deste trabalho, “Cravo em construção” , recordo a inauguração, durante a qual, num largo cheio de pessoas, Luis Ralha descodificou o sua criação, desvendando-lhe os segredos, oferencendo-a em definitivo àqueles, para quem afinal a concebeu.
Faleceu na semana passada Luis Ralha, artista plástico. Cursou pintura na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa e artes decorativas no Liceu António Arroio. Detentor de um trabalho ímpar e de um curricula impressionante. Além das qualidades artísticas, Luis Ralha possuia raras qualidades humanas. Todo o seu trabalho foi um manifesto. Cada obra sua é uma narrativa.
Em Loures colaborou na programação de exposições de artes plásticas no Município. Foi autor de uma escultura evocativa dos 30 anos do 25 de Abril no centro de Santa Iria de Azóia. Deste trabalho, “Cravo em construção” , recordo a inauguração, durante a qual, num largo cheio de pessoas, Luis Ralha descodificou o sua criação, desvendando-lhe os segredos, oferencendo-a em definitivo àqueles, para quem afinal a concebeu.
LUIZ PACHECO
Sentindo-me incapaz de escrever algo sobre a figura, socorro-me de um texto publicado em TRIPLOV.COM.
"Em 1997, Luiz Pacheco, que fez da mendicidade um modo de vida, estava principescamente instalado na Vila Máryah, uma luxuosa estância de repouso para idosos, em Palmela. Eu visitava-o de vez em quando por causa da edição de "Carbonários: Operação Salamandra - Chioglossa lusitanica Bocage, 1865", que saiu na Contraponto, a sua conhecida editora, afecta ao Surrealismo. Raramente o encontrei sozinho, ele tem sempre muitas visitas, de modo que se cruzavam amigos, conversas e destinos. De uma vez deixámos passar a hora de saída e a porta foi fechada, encarcerando os forasteiros. Em vão se procurou o porteiro, nada, um táxi lá fora esperava, a palaciana residencial aninha-se num pinhal isolado, longe da povoação. Caía a noite, e se o taxista desistisse da espera lá teríamos de dormir com o Libertino que passeou por Braga, a idolátrica, o seu esplendor. De modo que, para aflitivos cárceres, fugas airosas, e foi mesmo pela janela, estilo Zé do Telhado, mas com aterragem de corpo inteiro, mais o saco dos livros desfolhados, no canteiro dos lírios, como convém nestes lances da nossa árdua vida literária.
A situação é suspeita, viola algumas normas sociais, morais até, mas os intervenientes sabem da sua intrínseca inocência, e só isso é fundamental: a moral é um colete de forças que o grupo dominante aplica ao dominado para salvaguardar a sua prepotência, mas o Bem e o Mal são completamente distintos e independentes disso - pode o Mal estar de mão dada com a moral e o Bem contra ela, como foi o caso.
Refiro-me a essa emblemática edição cujo 33º aniversário o TriploV comemora, no âmbito das suas actividades em torno do Surrealismo - O Libertino passeia por Braga, a idolátrica, o seu esplendor (Contraponto, 1970). No caso, a imoralidade reduz-se a uns palavrões, que são palavras que todos conhecemos e figuram nos bons dicionários, ao pecado dos maus pensamentos e a um acto sexual. Porém, a moralidade sexual que o livro violou em 1970 hoje já não vigora. Esse acto sexual cometido, único, pois todos os outros são apenas delírios da imaginação, é aquele que neste preciso instante o governo de Inglaterra tenta que as escolas ensinem ou promovam junto dos alunos, num desesperado esforço para que baixe a altíssima taxa de gravidez em menores - a masturbação.
E aqui estou eu a falar destas coisas, como se fossem importantes, e são. A moral muda consoante o grupo dominante e as necessidades do grupo social, o que não muda é a ética. Ora o livro não viola nenhuma ética, pelo contrário: as conversas no quarto da pensão, com o sargento, por exemplo, giram em torno da PIDE, do que se passava em "Angola-é-Nossa", e o texto que o Libertino lhe passa para as mãos não é a "Filosofia da Alcova", sim o "Depoimento de uma angolana", sobre as atrocidades cometidas contra os negros, que tem vindo a ser reeditado juntamente com "O Libertino...". À parte os devaneios de imaginação de um homem cuja libertinagem é quase só mental - e nas Bragas daquele tempo os pensamentos eram tão pecaminosos como os actos -, o espírito ocupa-se de livros, os livros que os portugueses não lêem, a vida acanhada em tempos de opressão, e até a tentativa de sedução das Super-Gèninhas se faz de forma letrada, com os bilhetinhos escondidos na cápsula das castanhas.
A libertinagem, nesse sentido de liberdade sexual sem mais, deixou de ser importante numa época - a nossa - em que as raparigas saem à noite e são industriadas pelos pais no uso de preservativos. O texto, agora, torna-se cómico nesse lado, rimos com gosto de certas situações. Não que tenha perdido a força, mas porque de facto a função do libertino foi a de mostrar quão ridículo era aquele puritanismo, simplesmente esse ridículo só é perceptível quando já não estamos sob o domínio da "idolátrica" - Braga, como símbolo da repressão que a Igreja sempre exerceu sobre o corpo, e desse labéu lançado sobre o prazer. Quanto ao regime, a propaganda salazarista reprimia a mente, a liberdade de pensar e desejar também, enquanto a sua élite se entretinha com os ballets rose. Sob a tirania, ninguém teria vontade de rir, o riso vem agora, em que há liberdade para ele. É claro que num país tacanho, de gente ferozmente agredida no corpo e na alma, não há espaço para D. Juan, Sade nem Casanova, apenas para um pobre diabo que deseja e não alcança - tudo lhe corre mal, e de fracasso em fracasso só lhe resta a solução onanista. É um libertino à escala do país que éramos, por isso tão perfeito retrato nosso que Júlio Moreira, posfaciador da primeira edição, considera que o texto nos dá uma imagem muito mais exacta da realidade portuguesa do que toda uma literatura que se pretende interferente.
Mudados os tempos, o que sobra de "O Libertino..." e de Luiz Pacheco? Sobra tudo, que eu saiba ele ainda não foi estudado como a sua obra merece, perdidos que temos andado nos meandros das querelas pessoais e sexuais. Luiz Pacheco é um escritor absolutamente singular, não só na nossa literatura como em termos gerais. Ele não é um Sade, um Casanova, e isso é importante: pelo contrário, é totalmente diverso. O papel tradicional do macho está subvertido, ele não é um representante do falocentrismo, e nesse sentido não é um agressor, é um agredido. Não é um conquistador, é um conquistado; não é um amante, é um amador. A personagem carrega toda a humilhação e frustração do país.
Tradição fescenina e maledicente encontramo-la entre nós e e noutras literaturas desde as cantigas de escárnio, e não esqueçamos Bocage, mas Luiz Pacheco é muito diferente de Bocage, a sua veia quezilenta e debochada não se acomoda com nenhum parentesco. Surrealismo? Ele nega ter sido surrealista e é num texto surrealista que o afirma e mais: Deus o livrasse de tal - isto logo à entrada de "Pacheco versus Cesariny". Pois sim. Acontece porém que "O Libertino", como todos os outros textos de Luiz Pacheco, só teria sido possível na mundividência surrealista, à sombra da bandeira "poesia e liberdade": vida e obra são a mesma coisa, o anti-herói de "O Libertino" é o próprio Luiz Pacheco, que à data, em 1965, andava nas carrinhas da biblioteca itinerante da Fundação Calouste Gulbenkian a distribuir livros pelas aldeias para alfabetização geral. O desprendimento, a coragem com que se fala daquilo que em nós é mais íntimo e privado, sem a máscara da personagem, a espontaneidade de um relato que não foi decerto fruto de escrita automática, mas aceitemos que foi redigido no dia a seguir ao dos eventos, isso também pertence à esfera de procedimentos do Surrealismo. Ou abjeccionismo, termo aliás usado no texto. E tudo o que se relata aconteceu? É bem possível que sim, por obra e graça de acasos objectivos que juntaram Braga, o Libertino e Angola-é-Nossa num mesmo texto que, só por isso, ganha um volume simbólico não alcançado realmente por obras de esquerda, muito mais direccionadas politicamente. "
Desenhos de Henrique Manuel. In Luiz Pacheco, Textos Malditos, Fernando Ribeiro de Mello/Edições Afrodite, Lisboa, 1977.
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