2008/03/25

UM APELO À AUTO MOTRIZ




A edição de hoje do Diário de Notícias incluía uma publicação sobre o Poder Local, uma espécie de guia elementar, que como todas as publicações especiais, também esta é em parte suportada pela venda de espaços publicitários a anunciantes. Entre os muitos anúncios publicados a minha atenção recaiu sobre o anúncio de página inteira da AUTO MOTRIZ, uma empresa que se dedica ao comércio e manutenção automóvel em Sacavém.

Sob o título “A Auto Motriz faz o seguinte apelo", a empresa faz publicar seis parágrafos, que desdobram o apelo anunciado em seis, onde se fala de tudo menos da venda de viaturas, novas ou usadas. Neste anúncio, os responsáveis da empresa entendem dissertar sobre vários assuntos de interesse político e social. Jamais comentaria um anúncio de venda de automóveis se ele não fosse sobre tudo menos isso mesmo.

O primeiro apelo é dirigido aos Media, para que se abstenham de destacar “notícias negativas", que “não enaltecem a população portuguesa nem contribuem para o seu orgulho”. Este primeiro apelo recorda-me o conceito marcelista de direito à informação. Marcelo Caetano também entendia que só deveria ser levado ao conhecimento do público aquilo que fosse do seu interesse, sendo claro que alguém deveria velar pelo cumprimento desse interesse. A liberdade de imprensa é um valor democrático inquestionável, que enquadrado por normas legais e éticas, presta um serviço insubstituível à democracia. Sempre que se tentou domesticar a liberdade de imprensa em nome de interesses “superiores” da nação acabou-se invariavelmente na arbitrariedade e na negação dessa mesma liberdade.


Noutro parágrafo, os proprietários da Auto Motriz apelam aos laboratórios que apoiem as “famílias carenciadas que não têm condições de comprar os medicamentos (...)”. O direito à saúde dos cidadãos deve depender de um sistema nacional de saúde público, que assegure em condições de igualdade o acesso de todos os cidadãos aos cuidados médicos. Esse direito, consagrado constitucionalmente, não deve estar dependente da vontade caritativa de entidade nenhuma, mesmo os laboratórios. Se as práticas laboratoriais forem lesivas do interesse público e dos cidadãos, deve ser exigido ao Estado uma intervenção no âmbito das suas competências reguladoras.

A Auto Motriz (lembra) “aos portugueses que é extremamente difícil governar uma nação com dez milhões de habitantes, onde cerca de três milhões são estudantes não contribuintes, três milhões sãos reformados não contribuintes e um milhão são imigrantes em que parte do seu salários são enviados para os seus países de origem.” Mais uma vez os responsáveis da Auto Motriz recuperam uma máxima salazarista, “Se todos soubessem como é difícil governar, todos gostariam de obedecer.” Difícil é viver num país onde os direitos ganhos durante uma vida de trabalho vão sendo retirados aos pensionistas por sucessivos governos que teimam em fazer perigar o sistema nacional de segurança social, empurrando os pensionistas para as caridades acima referidas. Difícil é viver num país onde o sistema de educação serve para cumprir estatísticas e não para formar cidadãos. Difícil é viver num país onde os imigrantes são utilizados por empresários sem ética.

Mas mais enigmático é o apelo que aparece destacado no anúncio pago pela Auto Motriz, “Apelamos a todos os partidos políticos que trabalhem em conjunto, não separados e que não debatam publicamente sobre determinadas questões quando estas devem ser discutidas dentro de um gabinete. Visto os políticos sãos os pais dos portugueses, os pais exemplares não discutem em frente dos seus filhos.” De todos os apelos que os responsáveis desta empresa entenderam por bem fazer, este é o mais bolorento de todos. Os partidos políticos corporizam projectos diferentes de sociedade, defendem caminhos específicos para ultrapassar problemas concretos e têm estratégias diferentes para alcançar o bem comum. A essência da democracia é o debate público dessas diferenças. Aos cidadãos, depois do conhecimento dessas diferenças, é dada a palavra final. Nenhum cidadão deve encarar os políticos como “pais dos portugueses”. Esse paternalismo bacoco imperou durante quase 50 anos de ditadura com os resultados conhecidos. Ao contrário dos pais, os políticos devem ser aferidos, criticados, avaliados, e por fim, confirmados ou removidos. É a democracia! Por outro lado é cada vez mais necessário que as decisões políticas, em especial os processos que as sustentam, sejam públicas e publicitadas. É fundamental que os cidadãos, não só conheçam, como tenham oportunidade de intervir a cada momento nesses processos. Por essa razão já existem múltiplos mecanismos de consulta e debate, desde a Assembleia da República até às autarquias locais.

Por fim, faço um apelo aos responsáveis da Auto Motriz, que só conheço destas linhas. Acredito que a decisão de publicar estes apelos tenha sido a melhor e que ela possa traduzir uma real preocupação com a situação actual do país e também uma preocupação com as dificuldades que muitos cidadãos têm hoje. Porém, nem a forma nem o conteúdo foram os melhores. Seria interessante poder aferir a prosa com a realidade. A Auto Motriz tem, enquanto empresa, um vasto campo de responsabilidades sociais próprias. Publique, quando entender oportuno, um anúncio que dê a conhecer o seu bom exemplo. Diga que emprega não sei quantos trabalhadores, aos quais são garantidos todos os direitos laborais. Diga que tem uma política de empresa que garante aos seus trabalhadores uma condição material acima da média. Diga que os seus trabalhadores beneficiam de acções de formação e valorização profissional. Diga que os trabalhadores têm todos os seus direitos assegurados, nomeadamente os sindicais. Diga que essa empresa desenvolve práticas activas de conciliação da vida familiar com a vida profissional. Diga que essa empresa emprega imigrantes em pé de igualdade com os cidadãos nacionais e que esses não são utilizados como mão-de-obra barata. Diga que essa empresa tem uma prática solidária através do apoio a instituições de solidariedade na zona onde desenvolve a sua actividade. Se disser tudo isto, mas sobretudo se o fizer, já está a contribuir muito para a melhoria da sociedade portuguesa, muito mais do que aquilo que fez com a publicação deste inenarrável texto.

10 comentários:

Anónimo disse...

A essa empresa só faltou dizer que "entre marido e mulher ninguém mete a colher"!

Anónimo disse...

Afinal não é só o João Galhardas que é Trauliteiro,também a Auto motriz anda a tomar as dores deste Governo. Auto motriz a tomar as dores do Governo, tal como em Loures Galhardas, toma para si as dores da Camara PS.
Não percebi se a auto motriz, esta a dar o sermão aos peixes,ou a ter conversas em familia com o prof marcelo caetano,enfim
Agora é que nunca mais lá compro o carrinho.
Galhardas Barrigudo

Paulo Rosa disse...

Gostei da tua reacção ao disparate da auto, realmente com,o tu dizes se fize-sem vingar os direitos dos seus trabalhadores isso sim é que era um grande exemplo.

Anónimo disse...

Oiçam, este anuncio da Auto Motriz é só um anuncio! Pretende dar uma imagem humana da Auto - Motriz, realçando que esta se preocupa com outras questões, para além da compre e venda de automóveis.É uma táctica publicitária como qualquer outra. Não tem portanto qualquer outro objectivo propagandisco, que não seja promover a imagem da Auto - Motriz.O que é perfeitamente legitimo.
Portanto,afirmar que a mensagem do anúncio é anti-democrática e saudosista da ditatura é manifestamente exagerado e disparatado.Por favor, não caiam no ridiculo!

Anónimo disse...

No mínimo, a Auto Motriz devia mudar de empresa publicitária!

O MARQUÊS DA PRAIA E MONFORTE disse...

Caríssimo visitante;

Ao contrário de mim, o Sr. foi muito contundente na crítica ao texto publicado pela Auto Motriz. Não me passou pela cabeça que a intenção não fosse boa. Não ousei dizer que o texto, tão cheio de apelos, fosse mera táctica publicitária.
Continuo a achar que a intenção foi boa, mas a forma e o conteúdo foram desastrados, afirmando que existem outras formas de uma empresa dar a conhecer bons exemplos.

Com os melhores cumprimentos e estima pessoal;

O Marquês

Anónimo disse...

... A Auto-Motriz, enganou-se no tempo e no lugar; deveria vender carros na Alemanha Nazi, no seu esforço incessante de Guerra... para bem do Povo!!!

Anónimo disse...

Caro Marquês, a auto - motriz limitou-se a produzir opiniões sobre as quais a maioria do cidadão comum está de acordo. Não quero dizer que sejam opiniões correctas. Mas, infelizmente as nossa elites (classe politica, empresários,etc) estão completamente desacreditadas perante o povo. Este facto, conduz como é óbvio, a que este tenha opiniões por vezes "pouco ortodoxas".A mim, sinceramente isto preocupa-me, porque foi assim, com o povo descrente dos politicos que elegeu e a acreditar em homens providenciais,que surgiram inúmera ditaturas. Eu temo, se não houver uma inversão de atitudes, que a história venha a repetir-se...
Quanto à Auto - Motriz,como referi,limitou-se a seguir uma estratégia publicitária. Certamente não será ela a culpada do actual "estado de coisas" do pais.

O MARQUÊS DA PRAIA E MONFORTE disse...

Caríssimo visitante;

Concordo com quase tudo o que disse. Os proprietários da Auto Motriz têm todos os direitos cívicos, podem intervir politicamente em tudo o que entendam.
Sobre o texto do anúncio não vou dizer mais nada, mas vou-lhe proporcionar a leitura de excertos de uma entrevista dada em tempos por um dos responsáveis da empresa à revista figura. A leitura permitirá uma melhor definição do pensamento do cidadão. Sobre a empresa não tenho nada a comentar, porque não conheço. Contudo, a leitura desta entrevista permite uma aproximação à complexidade e profundidade do pensamento de pelo menos um dos responsáveis desta empresa.

A Automotriz está há mais de 25 anos no concelho de Loures e emprega 35 pessoas.
O administrador João de Sousa Rodrigues falou à figura sobre as perspectivas actuais e futuras da empresa do ramo automóvel. figura – Quantas pessoas emprega a Automotriz?
João de Sousa Rodrigues – Neste momento empregamos 35 pessoas. No ano passado (2005), empregávamos 75, mas não era possível mantê-las, dadas as mudanças e estruturas dos novos desafios para a economia. Com estas 35 pessoas, com boa vontade, produzimos o mesmo que com as 75, e as pessoas ganham muito mais dinheiro do que antigamente.
f – 35 pessoas distribuídas em que funções?
JSR – Essencialmente nas áreas de serviços pós-venda. Temos um departamento de recondicionamento de chapa e pintura, layout em série, mecânica e vendas. O sector das vendas é sempre muito mais pequeno do que os sectores de pós-venda.
f – E quais são os indíces de produção da Automotriz?
JSR - Acima da média. No ano passado (2005), perdemos 500 mil euros, indemnizámos 45 pessoas e este ano (2006), depois da recuperação, ganhámos 400 mil euros até ao mês de Novembro. E pensamos ganhar, até ao final de Dezembro, 500 mil euros. É um recorde. Tudo isto foi concebido dentro de uma política económica, baseada num estudo que detectei nos Estados Unidos, sobretudo em Miami, em que as pessoas têm que pagar para trabalhar. Mas depois são compensadas por todo o seu esforço e dedicação. E este foi o projecto que aplicámos.
f – A indústria norte americana tem que servir de modelo para as indústrias europeias e em concreto para a indústria portuguesa?
JSR – Exactamente. A Europa é uma sociedade nova em termos económicos baseou-se num projecto social e não num projecto económico. E hoje há grandes conflitos, há muitas pessoas desfavorecidas na África, no Bangladesh. E essas zonas vão entrar em crescimento, porque a mão-de-obra aí é muito mais barata. O dinheiro não tem fronteiras. Todos os níveis de produção vão passar para os países mais desfavorecidos. Se queremos produtos competitivos e baratos não podemos exigir muito nas produções.
f - A Automotriz é maioritariamente fornecedora de particulares ou de empresas?
JSR – Neste momento vamos ser fornecedores de particulares porque queremos apanhar um nicho de mercado. O fornecimento a empresas que pudesse ter preços competitivos e não é essencial porque os parâmetros de qualidade portuguesa são muito baixos. E durante estes 30 anos desactivámos tudo o que era tecnologia e qualidade em termos de serviços e tivemos um grande perda nesse sentido. Não estamos preparados para competir em grande quantidade uma vez que o país é muito pequeno. Tinhamos que nos juntar a Espanha para fazermos uma cinergia além mar, como já tivemos outrora. Penso que o nosso nicho irá caminhar cada vez mais para o particular, embora a nossa empresa seja a maior do país.
f- Qual é a relação com o poder local?
JSR – Estamos muito afastados porque sou anti-política. Penso que a política é a grande desgraça da nação.
f – Há possibilidade de a Automotriz se expandir para outras zonas?
JSR – O nosso projecto consiste em atingir cerca de 150 vendas a particulares por mês. Quando atingirmos os 120 por mês queremos criar uma parte social, visto que esta é uma fábrica muito grande e queremos dar comida aos pobres durante a noite. Queremos dar uma parte do nosso lucro aos necessitados. Quando crescermos para as 150 ou 160 vendas queremos criar um núcleo semelhante no Porto, que será um projecto de pós venda porque não sou amante das áreas comerciais porque só são valiosas se as áreas de pós-venda forem muito valiosas.
f – Sendo o administrador de uma empresa no ramo automóvel como vê os recentes problemas na fábrica da Azambuja, da Auto Europa?
JSR - As fábricas deslocam-se para países onde há maior índice de vendas. Não conheço como é que perdemos esta negociação. O administrador que era português deparou-se com greves. Os sindicatos não podem agir desta maneira, devem agir aliados aos patrões e pensar que têm que competir com a economia de leste, que é virada para a produtividade. Este é o factor essencial para que os portugueses percebam os seus problemas, e as empresas e os seus sindicatos conseguirem conciliar estes dois problemas. É um problema que tem que ser analisado a nível internacional e não a nível nacional.
f - A Automotriz avalia a sua situação de acordo com o panorama internacional?
JSR – A Automotriz tem uma grande experiência e está preparada para ter orçamentos completamente esmagados. Tem custos baixos e quando as vendas descem tem que ajustar o seu
f - Em caso de uma acalmia económica, vê-se a tentar dar esse salto lá para fora?
JSR – Sim. Em primeiro lugar quero conseguir o projecto nacional que é atingir as 150 vendas por mês, depois criar um projecto idêntico no Porto e a partir daí reatar as minhas relações com a Rússia, para conseguirmos projectos económicos e sociais para o mundo, idênticos àquele que consegui no nosso país.
f – A Rússia será uma plataforma de lançamento para outras economias de leste?
JSR – A Rússia será, para a Europa, uma salvação porque é o quinto produtor de petróleo do mundo e a Europa não tem petróleo. Enquanto a Europa não conseguir um projecto de energias alternativas terá que ficar sempre ligada à Rússia.

Anónimo disse...

A entrevista é de facto reveladora de uma mentalidade retrógrada misturada com um fascinio pelo modelo Norte - Americano (que em termos de direitos para os trabalhadores não é um exemplo a seguir) de organização económia)
Cumprimentos, caro Marquês!