2008/05/08

ZONA FRANCA




Assinalo o meu regresso ao Palácio, publicando um texto que Mário Crespo, Jornalista, escreveu recentemente no JN. O tema continua mais actual do que nunca. O apelo feito ao Governo português por um cidadão detido em Guantanamo, que atesta ter passado por território nacional, vem tornar claro que só mesmo as autoridades nacionais continuam a acreditar na palavra da administração norte-americana.
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"O documentário sobre o holocausto Shoah, de Claude Lanzmann, dura nove horas e meia. Grande parte da obra consiste em entrevistas conduzidas nas aldeias do Sul da Polónia por onde passava o comboio com prisioneiros para os campos de extermínio nazis, em Birkenau e Auschwitz. Lanzmann detectou duas atitudes genéricas dos aldeões à passagem dos comboios. Ou ignoravam ou, quando olhavam, faziam aquele sinal universal de morte anunciada que é passar rapidamente o indicador direito pelo pescoço, numa pantomina simbólica de um degolamento. Das entrevistas de Lanzmann, conclui-se que os camponeses polacos sabiam qual o destino dos prisioneiros. Mas, não se consegue entender o significado dessa comunicação com os condenados com um gesto prenunciador da morte que vinha aí.

Seria um acto atormentador que se integrava no martírio dos indesejáveis em que a população polaca foi activamente cúmplice? Seria um aviso? Seria uma daquelas crueldades brincalhonas que frequentemente surge com a habituação ao horror? Lanzmann, além de jornalista é um filósofo. Foi colega de Sartre e Beauvoir e, apesar das análises semióticas que fizeram das entrevistas, a ausência de conclusão clara deixa-nos num vazio angustiante quanto aos alcances da crueldade humana.

Por razões de pudor residual ou estratégia, os nazis implantaram as máquinas de morte industrial bem longe do seu território nacional. Esconderam-nas nos limites do império (a Polónia aparece em documentação nazi referida como Ostdeutschland - Alemanha de Leste). Para as dissimular, usaram subterfúgios tão elaborados que hoje é difícil reconstituir com exactidão histórica o intenso tráfego ferroviário entre a Alemanha e Auschwitz-Birkenau, tal foi o encobrimento nas rotas, nos manifestos de carga, nas falsas origens e falsos destinos.Nas ligações entre Guantanamo e as Lajes nós estamos a portar-nos como os camponeses polacos analisados por Lanzmann. Ou fingimos que não vemos ou fazemos gestos inconclusivos. No tratamento daqueles que a América suspeita de terrorismo, a base nos Açores tem sido o equivalente a um apeadeiro na linha entre a Alemanha e Auschwitz, onde o guarda-freio levanta a bandeira verde na noite escura, indicando que o caminho está livre para os indesejáveis acorrentados seguirem até às câmaras de tortura, no enclave americano em Cuba (isto não é metáfora. Os prisioneiros vão mesmo acorrentados e tortura-se em Guantanamo.

Quanto ao número de mortos, não se sabe. Ainda). Por ser um pacto militar, a sociedade civil em Portugal desconhece muito do acordo das Lajes. Isso dá ao Governo imensa latitude de evasivas nas explicações que lhe são pedidas. A 30 de Janeiro de 2008, o primeiro-ministro dizia no Parlamento poder garantir que nunca tinha sido nem consultado nem autorizara o trânsito em território nacional de prisioneiros para Guantánamo, insistindo que "esses dois actos" (consulta e autorização) nunca tinham existido. Portanto, nada aqui diz que não tenha existido o transporte sem consulta e sem autorização. Há outros indícios da ambiguidade oficial. A ONG Landmine Monitor, sobre o trânsito de cargas militares proibidas por aviões americanos nas Lajes, diz que as respostas que recebeu de três diplomatas portugueses do MNE e da Defesa inquiridos, João Pimentel, Vilar de Jesus e Fernando Brito, descrevem a expectativa do Governo português de que os americanos cumpram com o acordo, declarando voluntariamente os manifestos das cargas que transportam, mas admitiram que não há nenhum mecanismo formal de inspecção portuguesa das aeronaves americanas que transitam pela Terceira (Landmine Monitor Report 2004). Logo, tudo pode passar pelas Lajes. De material de guerra proibido, a gente raptada e acorrentada. Se não for declarado, ninguém fiscaliza. Acredita-se.

A verdade oficial que vem desde o actual primeiro-ministro aos diplomatas é que os americanos não solicitaram autorizações nem foram concedidas autorizações. Mas há outros elementos. Prisioneiros que transitaram pelas Lajes têm feito depoimentos denunciando as escalas nos Açores. O "60 Minutos", da CBS, fez várias reportagens atestando este tráfico maldito que oficialmente Portugal diz desconhecer. Kurt Volker é o negociador americano da nova versão do acordo das Lajes. Questionado pelo "Expresso", recusou-se a comentar o transporte ilegal de prisioneiros. Uma recusa de comentário é nos Estados Unidos um acto mediaticamente muito significativo.

A 21 de Fevereiro deste ano, o Governo de Bush reconheceu e pediu desculpas públicas ao Reino Unido por ter usado a base britânica em Diego Garcia para o trânsito de prisioneiros de guerra, depois de Londres dizer que considerava "muito grave" esse tráfego não-autorizado. Com a passividade, Lisboa e os americanos ainda se podem refugiar num "no comment" porque a atitude de sucessivos governos portugueses fez da base das Lajes uma Zona Franca dos direitos humanos."

Mário Crespo escreve no JN, semanalmente, às segundas-feiras

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